Este pequeno fragmento, 21, 5 cm, de um relevo, em mármore, representa a parte inferior do torso e os membros inferiores, de uma Ménade ( termo que deriva do radical do verbo grego maínomai, que significa mulheres "furiosas", frenéticas, mulheres loucas), trajada com uma veste transparente.
A posição e abertura dos membros inferiores, com os pés em pontas, refletem um movimento delicado e firme de uma figura feminina dançando, acentuado pelo voluteio das pregas a que o efeito molhado confere transparência.
Encontrada, no século XVIII, já fora do contexto original, junto aos alicerces da muralha romana de Beja, esta escultura pertenceu à colecção do Bispo Frei Manuel do Cenáculo, que a expôs no Museu Sesinando Cenáculo Pacence, situado junto ao largo do Salvador, em Beja, um museu nos primórdios da museologia em Portugal e, na época, uma referência nos circuitos internacionais de viajantes eruditos.
Levado para Évora, em 1802, a peça encontra-se exposta no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora. Apoiada numa discreta base, criada pelo escultor eborense João Cutileiro, a qual lhe sublinha o ritmo e elegância da dança. Esta é, como diz Joaquim Caetano, uma das mais belas esculturas do Museu de Évora”.
Segundo a mitologia clássica, as primeiras Ménades foram as ninfas que alimentaram o deus Dionísio/Baco, e são conhecidas como as bacantes divinas. Inspiradas pela embriaguez, cantam e dançam freneticamente até serem possuídas por um êxtase místico. Representam-se nuas ou vestidas com véus ligeiros que mal lhes dissimulam a nudez. Em grupo de nove, dançam coroadas de hera, e trazem na mão um tirso, por vezes um cântaro, ou então tocam um instrumento, como uma flauta de dois tubos ou um tamborim.
Os seus rituais de danças frenéticas e gritos ruidosos, que incluíam a dilaceração e refeição de animais selvagens, não ocorriam em nenhum templo, que dele não necessitavam. O culto era prestado em lugares montanhosos e florestas densas, onde, afastadas dos homens e sem a presença de olhares de censura, realizavam o festim de excessos e lascívia, convivendo com seu deus, que as presenteava com leite de cabra e bagas, entre outras iguarias.
As bacantes, nome que as Ménades tomam em Roma, onde Dionísio se chama Baco, são muito populares em tempos de Augusto, de tal modo que Virgílio, na Eneida, ao relatar a reação de Dido, a rainha de Cartago, quando descobre que os troianos se preparam para partir sem dizer nada, compara a sua reação de loucura e furor, inspirada simultaneamente por forças externas e internas, a uma ménade: “Privada de razão, encoleriza-se e vagueia como louca por toda a cidade, como uma Tíade (bacante) excitada pela preparação das cerimónias rituais, quando, ao ouvir o nome de Baco, a incitam as orgias trienais e, pela noite, o monte Citéron a chama aos brados.” (Vírgilio 4.300-3)
Neste delicado fragmento de relevo é sensível uma linguagem plástica do primeiro classicismo (século V a.C.) que apreendemos através da transparência sensual das vestes e da sensação de movimento, linguagem que seria recuperada na época do imperador Augusto (31 a.C. - 14 d.C.), período em que foi, certamente, executada essa peça.
Muitas dúvidas permanecem sobre essa escultura. Que elemento decorativo seria? Estaria suspensa como parte de um oscillum? Em que espaço se aplicava? Um edifício público de Pax Iulia, num edifício privado?
Helena Paula Carvalho diz que “a ménade talvez estivesse a decorar uma residência privada (um jardim por exemplo), mas é difícil não imaginar outras hipótess”. [p. 106]
Não vislumbro eu o ponto da cidade de onde veio esta magnífica peça que, na Idade Média, como outras, foi considerada desperdício civilizacional e em gesto (talvez impensado) foi objecto de damnacio memoriae e usada como pedra para construir a muralha. Mas ficando nas hipóteses, estaria lá, em lugar onde as culturas se conjugavam, onde a narração de relatos dos cerimoniais frenéticos destas mulheres adoradoras do deus Bákkos, com seu adorado (o único que do panteão olímpico desce para se misturar com humanos) tivesse entendimento e fizesse sentido.
Pouco importa, o local; é uma evidência mais do cosmopolitismo cultural de Pax Iulia, em tempos de Augusto.
Bibliografia
CARVALHO, Helena Paula Abreu, 1992, " A Esculturas Romana em Portugal: um ensaio de Arqueologia Social, Universidade dos Açores, 1992 , pp 116.
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