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19/07/2020

Estátua do culto imperial em Pax Iulia (Beja), Portugal

Parte superior de uma estátua (de tamanho maior que o natural), que deve corresponder a uma das peças do grupo escultórico do culto imperial organizado no forum da cidade de Pax Iulia, Beja.
A cavidade aberta na zona do pescoço servia para colocar a cabeça da personagem da casa imperial que se apresentaria sentada.
Esta foto data de 2013, pouco depois de ter sido recolhida algures na cidade. Dada a "grande qualidade artística", reconhecida, entre outros, pela especialista Trinidad Nogales Basarate (durante muitos anos diretora do Museu Nacional Romano de Mérida), previa-se que em 2020 tão importante peça estivesse em local publico onde fosse identificada e a sua importância realçada. Está, desde há uns anos, no Museu da Rua do Sembrano, ao fundo da salaencaixada no espaço de uma porta rotativa de vidro (suja e enferrujada), onde serve para disfarçar e impedir o acesso a tão desastrada abertura no tão infeliz projecto de arquitetura. Para ali atirada (confinada), poucos dão importância a esta magnífica peça, mesmo amputada; e menos ainda saberão que tipologicamente é muito próxima de duas estátuas do conjunto do possível Santuário del Cerro de Minguillar, em Baena (Cordova, Espanha), a antiga cidade de Iponuba, as quais se exibem no Museu Nacional Arqueológico, em Madrid, com o destaque que lhes é devido.

Com tipo igual a esta, achada numa das grandes villae da periferia de Beja, expõe-se num dos corredores do Museu de Évora a parte inferior de uma estátua sedente feminina, talvez uma imperatriz, de qualidade artística notável, datada do início do império.
 Uma pequena inscrição em grego, num dos lados, levanta a possibilidade de ter sido uma peça importada, para servir de modelo a outras ou, não sendo para modelo ser o resultado do trabalho de um escultor de origem grega, de grande mestria que, entretanto, tinha chegado à Lusitânia.
 Achada na villa romana
 de  Vale de Aguieiro, foi levada para Évora, conjuntamente com outras peças, por Frei Manuel do Cenáculo no final dom século XVIII.
 


Desta e doutras notáveis peças da escultura de Pax Iulia  muito brevemente daremos notícia aprofundada
Até lá, fica-lhes aqui a porta aberta.


30/03/2020

Ménade. Fragmento de Baixo Relevo de Pax Iulia, Beja, Portugal.

Este pequeno fragmento, 21, 5 cm, de um relevo, em mármore,  representa a parte inferior do torso e os membros inferiores, de uma Ménade ( termo que deriva do radical do verbo grego    maínomai, que significa mulheres "furiosas", frenéticas, mulheres loucas), trajada com uma veste transparente.  
A posição e abertura dos membros inferiores, com os pés em pontas, refletem um movimento delicado e firme de uma figura feminina dançando, acentuado pelo voluteio das pregas  a que o efeito molhado confere transparência.
Encontrada, no século XVIII, já fora do contexto original, junto aos alicerces da muralha romana de Beja, esta escultura pertenceu à colecção do Bispo Frei Manuel do Cenáculo, que a expôs no Museu Sesinando Cenáculo Pacence, situado junto ao largo do Salvador, em Beja, um museu nos primórdios da museologia em Portugal e, na época, uma referência nos circuitos internacionais  de viajantes eruditos.
Levado para Évora, em 1802, a peça encontra-se exposta no Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora. Apoiada numa discreta base, criada pelo escultor eborense João Cutileiro, a qual lhe sublinha o ritmo e elegância da dança. Esta é, como diz Joaquim Caetano, uma das mais belas esculturas do Museu de Évora”.
Segundo a mitologia clássica, as primeiras Ménades foram as ninfas que alimentaram o deus Dionísio/Baco, e são conhecidas como as bacantes divinas. Inspiradas pela embriaguez, cantam e dançam freneticamente até serem possuídas por um êxtase místico. Representam-se nuas ou vestidas com véus ligeiros que mal lhes dissimulam a nudez. Em grupo de nove, dançam coroadas de hera, e trazem na mão um tirso, por vezes um cântaro, ou então tocam um instrumento, como uma flauta de dois tubos ou um tamborim.
Os seus rituais de danças frenéticas e gritos ruidosos, que incluíam a dilaceração e  refeição de animais selvagens, não ocorriam em nenhum templo, que dele não necessitavam. O culto era prestado em lugares montanhosos e  florestas densas, onde, afastadas dos homens e sem a presença de olhares de censura, realizavam o festim de excessos e lascívia, convivendo com seu deus, que as presenteava com leite de cabra e bagas, entre outras iguarias.
As bacantes, nome que as Ménades tomam em Roma, onde Dionísio se chama Baco, são   muito populares em tempos de Augusto, de tal modo que Virgílio, na Eneida, ao relatar a reação de Dido, a rainha de Cartago, quando descobre que os troianos se preparam para partir sem dizer nada, compara a sua reação de loucura e furor, inspirada simultaneamente por forças externas e internas, a uma ménade: “Privada de razão, encoleriza-se e vagueia como louca por toda a cidade, como uma Tíade (bacante) excitada pela preparação das cerimónias rituais, quando, ao ouvir o nome de Baco, a incitam as orgias trienais e, pela noite, o monte Citéron a chama aos brados.” (Vírgilio 4.300-3)

Neste delicado fragmento de relevo é sensível uma linguagem plástica do primeiro classicismo (século V a.C.) que apreendemos através da transparência sensual das vestes e da sensação de movimento, linguagem que seria recuperada na época do imperador Augusto (31 a.C. - 14 d.C.), período em que foi, certamente, executada essa peça. 
Muitas dúvidas permanecem sobre essa escultura. Que elemento decorativo seria? Estaria suspensa como parte de um oscillum? Em que espaço se aplicava? Um edifício público de Pax Iulia, num edifício privado? 
Helena Paula Carvalho diz que “a ménade talvez estivesse a decorar uma residência privada (um jardim por exemplo), mas é difícil não imaginar outras hipótess”. [p. 106]
Não vislumbro eu o ponto da cidade de onde veio esta magnífica peça que, na Idade Média, como outras, foi considerada desperdício civilizacional e em gesto (talvez impensado) foi objecto de damnacio memoriae e usada como pedra para construir a muralha.  Mas ficando nas hipóteses, estaria lá, em lugar onde as culturas se conjugavam, onde a narração de relatos dos cerimoniais frenéticos destas mulheres adoradoras do deus Bákkos, com seu adorado (o único que do panteão olímpico desce para se misturar com humanos) tivesse entendimento e fizesse sentido. 
Pouco importa, o local; é uma evidência mais do cosmopolitismo cultural de Pax Iulia, em tempos de Augusto.

Bibliografia

GONÇALVES, Luís Jorge Rodrigues, 2007 "Escultura romana em Portugal: uma arte do quotidiano", Studia Lusitana, IIVolume 1, n.º 115 pp 262.264- Vol. 2 p. 83, . Museo Nacional de Arte Romano; Mérida. (por toda bibliografia anterior)
CARVALHO, Helena Paula Abreu, 1992, " A Esculturas Romana em Portugal: um ensaio de Arqueologia Social, Universidade dos Açores, 1992 , pp 116.

24/03/2020

Pé de estátua couraçada colossal de Pax Iulia, Beja, Portugal




Foi Abel Viana, em 1946, que pela primeira vez publicou este pé de estátua couraçada, classificando-o como “pé votivo”, sem fornecer qualquer indicação sobre o local e o contexto de achado [VIANA, Abel, 1946].
Pé de estátua couraçada colossal de Pax Iulia, Beja
Séc. I d. C (meados)
Foto: M. Conceição Lopes@
O “pé heróico”, como o designou Luís de Matos [MATOS; Luís, 1996], é um fragmento  da parte dianteira de um pé direito, calçado com uma crepida ricamente decorada, deixando nua a extremidade do pé, conforme à tradição grega. Este pé, com 24 cm de comprimento (34, 5 com a base), assenta num soclo com c. 10 de altura. A decoração da crepida apresenta na  parte superior as cordas entrecruzadas que apertam no tornozelo e, lateralmente, uma cuidada decoração compósita de semicírculos bordejando as cordas e um ramo de acanto decorado com roseta, palmetas e pétalas de lótus. Uma fita ajusta os dedos, os quais se apresentam bastante danificados, todavia, deixando perceber as marcas das falanges. Entre o halux  e o segundo dedo passava a tira que fixava a sola, alta de 2 cm, à parte superior da crepida, como se percebe pelo pequeno vestígio que dela resta.
Em Conimbriga, foi identificado um fragmento de um pé esquerdo que Adília Alarcão considerou ter pertencido a estátua couraçada e colossal  de um imperador, venerada no forum
Havia em Pax Iulia edifícios importantes, como revelam as escavações recentes, e havia esculturas colossais que com eles se colocavam. Algumas inscrições, gravadas em pedestais de estátuas, conduzem-nos a templos, como aquele  do culto a luventus  ou Iuventas, que se localizava sobre o capitólio. Outras trazem-nos a lembrança de honras feitas a cidadãos, recordando  uma delas  que a população, por subscrição pública, tornou público o seu agradecimento a Gaio Júlio Pedão (IRCP, 239], duúnviro, flâmine dos divinos imperadores, por ter administrado bem a república e ter auxiliado com dinheiro.
Continuando com as inscrições que se recolheram no aglomerado urbano de Pax Iulia,  e que José d'Encarnação tão sabiamente nos tornou legíveis, há, também, aquela, de enormes dimensões, que apresenta  Gaio Júlio [IRCP, 233], que segundo uns é um magistrado, mais um, que terá distribuído benesses à população, a homens e mulheres e, que, de acordo com outros é um magistrado que pertenceu ou presidiu a uma das duas assembleias de notáveis, a dos cidadãos e a dos indígenas, que terão co-existido na cidade.
Num pedestal de estátua, nalguma zona nobre da cidade, o escravo Modestus imortalizou o edil M. Clódio Quadrado [IRCP, 237] e noutro inscreveram os libertos públicos a sua homenagem a Décimo Júlio Saturnino [IRCP, 240].
Caminhando um pouco mais pelas ruas e andado para a entrada das portas da cidade, lá onde repousam os morto, estava, em certo tempo, o tristíssimo epitáfio, em forma de poema, que os familiares dedicaram a Nice que viveu apenas 20 anos.
«Quem quer que tu sejas, viandante, que passares por mim, neste lugar sepultada,
se de mim tiveres pena — depois de teres lido que faleci no vigésimo ano de vida —
e se o meu descanso te sensibilizar, rogarei que, fatigado, tenhas mais doce descanso,
mais tempo vivas e longamente envelheças nesta vida que não me foi lícito desfrutar.
Chorar, de nada te serve. Porque não aproveitas os anos?
Ínaco e Io mandaram fazer para mim.
Vai, é preferível, apressa-te, agora que já leste o que tinhas para ler. Vai.
Nice viveu vinte anos».
Regressados ao forum, a praça principal da cidade, em algum dos edifícios públicos, no século I d.C, terá sido levantada a colossal estátua couraçada, muito certamente de um imperador, à qual pertenceu este pé.
Executado por um artista qualificado, que poderá ter trabalhado no programa iconográfico do centro monumental de Pax Iulia, talvez, em tempos de Cláudio, quando se davam os retoques finais do programa de reconfiguração da cidade iniciado um pouco antes por seu tio, o imperador Tibério, cujo templo de culto imperial se apresenta como obra notável no forum.
Nenhuma inscrição nos trouxe, até hoje, a certeza do local exacto de onde estava a estátua que, apoiada neste pé, pela sua altura, certamente observava toda a cidade. Mas, fixando-nos em tão extraordinária peça, são as palavras certas de Augusto que dela se propagam em silencioso eco pela cidade: Em tudo o que fizeres apressa-te lentamente.
Pé de estátua couraçada colossal  sobre o azulejo
Museu Regional de Beja
Foto. M. Conceição Lopes






VIANA, Abel, 1946, "Arte romano-Visigótica", Achivo Español de Arqueologia, 19, p.100, fig. 15a.

MATOS, José Luís, , 2007, 1966, Subsídios para um catálogo da escultura luso-romana, p. 127.

GONÇALVES, Luís Jorge Rodrigues, "Escultura romana em Portugal: uma arte do quotidiano", Studia Lusitana, IIVolume 1, n.º 38, pp 146-147, Vol. 2 p. 39, . Museo Nacional de Arte Romano; Mérida

LOPES, M. Conceição, 2019, "Pelo pé colossal de pax Iulia", Kairós. Boletim do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património, Vol. 1, pp. 57-59, Setembro, 2019, Coimbra



23/03/2020

Afrodite de Aphrodisias, Pax Iulia, Portugal


 Numa herdade em Beringel (Misericórdia’), pertencente ao Eng-º Mira Galvão, em 1923, no decurso de trabalhos agrícolas, recolheu-se um torso de uma estatueta, que Abel Viana, de acordo com a notícia publicada no Diário de Lisboa, de 27 de Fevereiro de 1943, considerou ser " a mais delicada e amorosa peça de estatuária romana até agora encontrada em Portugal”, relacionando-a com o culto de Vénus de Afrodite. 
Abel Viana assegurou que a pequena peça desse entrada no Museu Regional de Beja, onde hoje se encontra.Trata-se, na realidade, de uma representação de Aphrodite de Aphrodisias da qual se conserva a parte inferior do corpo, desde a cintura até ao tornozelo. Afrodite de Aphrodisias é a vinculação do culto de uma antiga deusa da fertilidade, da Anatólia, ao panteão helénico.   De acordo com a iconografia de Aphrodite de Aphodisias, cujo protótipo é a cópia de uma estátua colossal, de época helenística, encontrada no Boleuterium (casa do Conselho) da importante cidade de Aphrodisias (Turquia), a figura usaria um véu, preso numa coroa alta sobre o cabelo, uma veste fina, sobreposta de uma túnica (chiton), mais grossa e decorada. A decoração frontal da túnica repartia-se por uma área do peito e quatro faixas inferiores, correspondendo em cada uma delas uma decoração figurativa respeitante a diferentes aspectos de Afrodite.  Na parte exterior apenas surgem, bem desenhadas, as pregas que correspondem ao véu.
Da estatueta de Beringel não se conservaram a cartela do peito, onde estaria representada uma meia lua invertida entre os seios, e a primeira  faixa onde deveriam figurar Selénio (lua) e Helio (sol).  A segunda faixa tem representadas as três Graças, (suas assistentes), entre duas cornucópias, a terceira expõe Afrodite a montar um cavalo ou um bode do mar com tritões  e  a quarta  reproduz três Erotes  alados (seus filhos e agentes), o do meio figurado como lançador de setas.
A estatueta de Beringel, segue o protótipo canónico, sendo um dos 19 exemplares conhecidos, dos quais 11 são de Itália (Óstia e Roma) e desconhecendo-se qualquer  outro paralelo na Hispânia. 
 É uma obra de grande qualidade, importada de Roma, ao tempo do Imperador Adriano (século II d. C) . Segundo Robert Turcan, na ápoca de Adriano vários escultures de Afrodisias terão estado na capital do império a trabalhar na decoração da villa Adriana, como sugere o epitáfio do escultor Zenão, conservado no Vaticano, e a eles se deve atribuir a responsabilidade  da execução destas esculturas que se terão difundido pelo Mediterrâneo Central e Ocidental. A de Beringel terá chegado via Óstia.
O local de achado, uma propriedade rural (o que constitui raridade), está, certamente, ligado com um culto privado a Afrodisias, devendo a divindade ocupar um pequeno altar no interior da residência.
Outros testemunho dos cultos orientais na civitas de Pax Iulia, atestados por inscrições a Cibele ( IRCP. 289), Isis (IRCP. 338), Mitra (IRCP. 339) e (Serápis, I RCP. 231), datados de meados do século II, alinham com um ambiente de celebração dos cultos orientais  na capital do conventos Pacensis, conferindo à cidade um cosmopolitismo evidente, anotado, também, por outras inscrições e obras de arte.