Em Portugal, a Arqueologia já algum tempo que sucumbiu a "uma lógica de mercado a que se deve submeter em nome dos imperativos da “gestão do património arqueológico”.
O mundo, tal como o conhecemos actualmente, exige redobrada atenção às
questões do Património. Olhando o vídeo “Trump Gaza” que o senhor Trump nos enviou para casa, faz sentido ler e trazer de
novo para os materiais de debate obrigatório e reflexão nas Universidades,
entre outros, os textos de Laurent Olivier, Notre passé n’est pas à vendre Nuestro pasado no está en venta, Complutum, 2013, Vol. 24 (1): 29-39 e How I learned the Law of the Market, In Aparicio, P. (ed.) (2016): Archaeology and Neoliberalism. JAS
Arqueología Editorial, Madrid: 223-238
No resumo do texto de 2013, Laurente Olivier escreve:
"A própria razão de ser da arqueologia está agora a ser brutalmente atacada,
sob a pressão de uma lógica de mercado a que se deve submeter em nome dos
imperativos da “gestão do património arqueológico”. Esta submissão tem a sua
forma mais visível na ascensão da chamada arqueologia “preventiva”, mas
afecta também, de forma não menos violenta, o funcionamento dos museus e a
investigação institucional. No interior da própria disciplina, esta
subjugação da arqueologia reflecte-se no desenvolvimento de um verdadeiro
processo de proletarização da investigação. No plano externo, a
“mercantilização” da arqueologia está a desfazer o elo político que une o
estudo e a preservação dos vestígios do passado à comunidade de cidadãos que
os herdaram. Desta forma, a submissão à norma económica produz uma dupla
exclusão: exclui os arqueólogos da sua própria disciplina, tal como exclui
os cidadãos dos seus próprios assuntos - a coisa pública, a res publica. Por
toda a Europa, faz-se a mesma constatação: uma nova classe de tecnocratas
está a tomar o poder sobre os investigadores e os criadores. Está a
desmantelar os domínios de que se apoderou, transformando-os em meras
actividades de produção económica, agora desprovidas de qualquer
significado. Não podemos, em boa consciência, abandonar a gestão da nossa
disciplina. Não abandonemos a arqueologia, como os nossos antecessores a
abandonaram ao fascismo e ao nazismo."
Três anos passados, no texto 2016, Laurent Olivier anota o percurso que se
fez:
"A concorrência fez explodir o trabalho de elaboração de dados
arqueológicos. Escavávamos um fragmento de sítio aqui, mas o outro fragmento
está a ser escavado ali pela concorrência. Não saberemos, portanto, nada, ou
saberemos muito pouco. No entanto, o conhecimento arqueológico é construído
através da paciente acumulação de observações, operação após operação, ano
após ano. De que serve agora o trabalho de campo, se já não é isso? Não é
surpreendente notar, nestas condições, que a arqueologia preventiva se
tornou um dos sectores de actividade onde as perturbações psico-ocupacionais
- como se costuma dizer - assumiram uma importância preocupante. E depois há
a questão dos arquivos da escavação, que já não estão centralizados em lado
nenhum e que correm o risco de acabar no caixote do lixo quando um operador
privado vai à falência ou abandona a sua actividade.
(...) A arqueologia tornou-se não só o auxiliar dos empreendedores
(entidade contratante), a sua vanguarda de certa forma, mas também e,
sobretudo, instrumento da Lei do mercado. O seu capital de simpatia, que era
imenso na opinião pública, foi grandemente desvalorizado: a arqueologia
inspira agora desconfiança, ou mesmo desinteresse. Isto não é surpreendente;
nas suas actuais condições de funcionamento, a arqueologia foi despojada do
seu papel social. Já não liga às pessoas restaurando-lhes um património
comum, uma riqueza frágil pertencente a todos; ela contribui, ao contrário,
para espoliámos dessa memória dos lugares onde vivem e trabalham.
Isto não é o que queríamos Não era isto que queríamos; não é isto que
queremos.
A arqueologia não está à venda, porque não pode ser de qualquer forma um
produto. É um património comum, disponível para a comunidade. E é em
benefício de todos que devemos cuidar dele, precisamente porque este
património arqueológico é um bem comum inalienável. A arqueologia não
presta serviço e os arqueólogos não são agentes que trabalham para
clientes. A arqueologia transmite o património arqueológico do passado às
gerações futuras e os arqueólogos trabalham para a comunidade. Não faz
sentido de outra forma."
![]() |
Palestinos retornam a cenário devastado por Irael na faixa de Gaza, no domingo (19), após acordo de cessar-fogo - Omar Al-Qattaa/AFP |
Na Gaza do senhor Trump não há Arqueologia, mas há notas que caiem do céu. Mas, face ao que fazemos atualmente,"Escavávamos um fragmento de sítio aqui, mas o outro fragmento está a ser escavado ali pela concorrência. Não saberemos, portanto, nada, ou saberemos muito pouco”, pouco importa se há ou não há Arqueologia. E, todavia, deveria importar.
Para que se não eliminem os traços das Gaza deste mundo, ou que se não
memorizem apenas por fragmentos sem nexo nem sentido, que se guardam em
reservas que a todo o momento podem ser deitadas ao lixo, quando não são
essas reservas já o próprio lixo, é urgente pensar se é isto que
queremos da Arqueologia.
Porque é fácil deslumbrarmo-nos e, mais fácil ainda, AGILIZAR, como nos é proposto a partir das instituições que gerem o Património em Portugal.